Uma Igreja Ministerial
A presente reflexão tem como objetivo expor questões sobre a Teologia do Ministério, tendo como ponto inicial o movimento de Jesus e seus desdobramentos históricos.
Partimos da proposta difundida por diversos teólogos de que a Igreja é formada por diferentes Ministérios1, onde todas as pessoas batizadas fazem parte do sacerdócio comum dos fiéis2.
Numa feliz analogia, o Apóstolo São Paulo, em sua primeira carta à comunidade de Corinto, no capítulo 12,12-27, compreende a Igreja como sistema orgânico, onde os membros da comunidade são tal como membros de um corpo, e Cristo é a cabeça. Paulo, entretanto, reconhece que o corpo possui vários membros, cada qual com a sua função determinada pela natureza, de maneira própria e particular. A partir dessa premissa, podemos articular uma Teologia dos Ministérios, onde todas as pessoas batizadas fazem parte do sacerdócio comum/universal dos fiéis, desenvolvendo assim, os dons e carismas para a edificação do Corpo de Cristo que é a Igreja, e santificando o mundo como testemunhas da ressurreição. Porém há Ministérios específicos e atuantes na vida da comunidade de fé, que ganham legitimidade e múnus para o exercício de suas funções eclesiais.
Teologia dos Ministérios no Novo Testamento.
Conforme a análise de Brown3 é possível pensar os Ministérios a partir de conceitos herdados do Antigo Testamento, porém, o ofício do “sacerdote do templo” não aparece como figura relevante no Novo Testamento, até porque há a ruptura entre as práticas religiosas no templo e a proposta da nova aliança anunciada por Cristo, onde os sistemas são invertidos e ressignificados pelas primeiras comunidades. Para o autor (BROWN) o sacerdócio como compreendemos na contemporaneidade, parte da íntima ligação com a confissão fé, apresentada pelo autor sagrado da carta aos Hebreus, onde Cristo recebe o título de Sumo Sacerdote (Hb. 9,11) e os Apóstolos herdeiros desse Ministério, segundo a tradição.
No entanto, quando nos deparamos com os escritos do Novo Testamento, não encontramos de maneira clara e especifica a origem da Teologia dos Ministérios. Faz-se pertinente num primeiro momento, reconhecer a diferença entre o grupo dos 12 discípulos (Mc. 3,13-19) e os Apóstolos. O grupo dos 12 discípulos tem caráter e legitimação de Apóstolos4, todavia, os demais homens e mulheres que tiveram uma experiência de fé com o Cristo ressuscitado, não necessariamente fizeram parte do grupo dos 12 ou mesmo dos primeiros (as) seguidores (as) de Jesus. Estes primeiros discípulos se sentiram seduzidos pelas palavras e gestos de Jesus, mesmo não compreendendo nitidamente o projeto do Reino (Mt. 16,22).
Após a morte, ressurreição e ascensão do Senhor o grupo mais íntimo que conviveu com Jesus, tornou-se testemunha da ressurreição e arautos de uma Boa Notícia (Evangelho), formando assim, um novo grupo, o dos Apóstolos, isto é, os que foram enviados em missão.
Não encontramos nos escritos canônicos do Novo Testamento a estrutura hierárquica como as igrejas que preservam a catolicidade compreendem tais Ministérios na atualidade. O que percebemos é uma realidade conforme aponta o Bispo Sumio Takatsu: “Na Igreja Primitiva bem pode ter tido uma considerável diversidade na estrutura do Ministério Pastoral, embora esteja claro, que alguns deles eram administrados por ministros que eram chamados de Episcopoi e presbyteroi... não há nenhuma evidência de que Bispos e Presbíteros fossem nomeados em toda parte na Igreja Primitiva”5. Compreende-se que tanto o Bispo quanto o Presbítero exerciam as mesmas funções pastorais e administrativas.
Apesar de possuir os mesmos atributos ministeriais, as palavras “Presbítero” e “Bispo”, possuem conotações distintas. Numa livre tradução do grego, Presbítero é o ancião, o velho, membro do conselho; Bispo, palavra também de origem grega que deriva da junção de um adjetivo e um verbo: “epi” (super) e “skopos” (ver); literalmente, podemos traduzir por supervisor, superintendente, um fiscal.6 Em seu dicionário Taylor, ao analisar ambas as palavras, também não faz diferença entre as funções.
Podemos aventar que nas comunidades primitivas, os Bispos e os Presbíteros eram tidos como pastores, não havendo diferenciação no grau de importância ministerial. Diferente dos Diáconos que são citados nas cartas de São Paulo a Timóteo (I Tm. 3,1-12), pessoas com um ministério especifico, de servir aos pobres. Constatamos essa realidade quando comparamos as cartas que Paulo escreveu a Tito (1,7-9) e na primeira carta a Timóteo (3,1-7).
No pensamento paulino não há a presença de uma hierarquia formal ou diferenciada de atributos entre os Bispos e Presbíteros. Veremos em ambas as epístolas exortações similares tanto aos Bispos e Presbíteros.
A partir desse postulado, surge um questionamento: Como as igrejas que professam sua catolicidade e apostolicidade, chegaram ao formato de estrutura hierárquica que as define como episcopais?
Não podemos esquecer que a Igreja é de Cristo, porém, possui uma historicidade. Já confrontados com os escritos do Novo Testamento, concluímos que apenas a figura dos Diáconos é definida (At.6,1-vs), e que não havia diferença hierárquica entre Bispos e Presbíteros, mesmo no belíssimo testamento de Paulo, exposto no Livro dos Apóstolos (20,17-37), quando em Mileto, o Apóstolo convoca os Presbíteros de Éfeso para dar suas últimas instruções. Com tais exposições, compreendemos que os Ministérios de Bispos e Presbíteros não são fruto de uma organização homogênea e pensado de maneira institucional ou teologal, como compreendemos hoje.
Os desdobramentos são históricos, porém, não podemos desconsiderar a ação do Espírito Santo (Jo. 3,8) na história humana, como afirma o teólogo Von Balthasar, a história de Deus é também a história da humanidade7.
Na Didaqué, o primeiro manual de catequese dos cristãos que se preparavam para receber o santo Batismo, não há referências à figura dos Presbíteros, mas dos Bispos e Diáconos. Os textos originais não fazem alusão sobre a escolha de um Presbítero em destaque, escolhido pelo colégio (grupo) de presbíteros8.
Em sua carta a Filemon, na saudação, São Paulo compreende Timóteo e Filemon como colaboradores no ministério, mas não lhes concede títulos de Bispos ou Presbíteros (Fl 1,1). Século XVII – Redescobrindo a Tradição (Inácio de Antioquia) Por volta do ano 107 da era cristã, conforme aponta Wrigth9, Santo Inácio de Antioquia em suas reflexões teológicas, reconhecendo-se herdeiro dos ensinamentos dos Apóstolos, define a tríplice hierarquia (Diáconos, Presbíteros e Bispos), compreendendo que essa estrutura organizacional seria uma maneira de melhor servir à igreja, o povo de Deus.
Para Santo Inácio a união com a hierarquia era prerrogativa para a união com Deus: “...cheguei a ver e a amar pela fé toda a comunidade, exorto: Esforçai-vos por fazer tudo na harmonia de Deus sob a presidência do Bispo em lugar de Deus e dos Presbíteros em lugar do colégio dos apóstolos... Nada haja entre vós que possa dividir-vos, mas uni-vos com o Bispo e com os presidentes, para constituirdes uma imagem e um ensinamento de imortalidade.”10
Para Santo Inácio, o Bispo era símbolo concreto de unidade entre a Igreja e quem presidia sobre os demais ministérios eclesiais, por isso digno de honra. Mas na condição de Pastor dos pastores, possuía a responsabilidade de não apenas supervisionar, mas de cuidar e garantir que os ensinamentos dos apóstolos fossem seguidos e observados como verdade divina. Importante ressaltar que os documentos históricos, de maneira particular as cartas de Santa Inácio, que apontam a origem da tríplice hierarquia na vida da Igreja, foram descobertos no ocidente cristão e publicados no séc. XVII, por meio das pesquisas de dois Bispos Anglicanos, Ussher e Pearson.
A partir de seus estudos sobre a obra de Santo Inácio de Antioquia, a Igreja da Inglaterra passou a adotar uma doutrina mais sóbria sobre o Episcopado, não apenas considerando esse Ministério como um elemento importante para o bem estar da Igreja, mas um conceito quase que de direito divino, conforme Wrigth11, possivelmente, uma formulação teológica em resgate da tradição apostólica, tendo como objetivo, fomentar um debate com os Puritanos que tendiam a ver/ compreender o Ministério Episcopal como um elemento importante para o bem estar da Igreja, porém, não essencial. Assim, compreendiam os Bispos Anglicanos Person e Ussher no século XVII, tendo como paradigma as cartas apostólicas de Santo Inácio, que reafirmam na tradição da Igreja, a essência própria do Ministério Episcopal não apenas como uma necessidade de supervisão, mas de um Pai em Deus para o povo de sua Diocese.
Segundo a tradição apostólica da Didaqué, a Igreja como instituição humana, teve a necessidade de uma organização formal. Num primeiro momento, os Bispos eram escolhidos pelo povo por seu carisma e dignidade12.
Percebemos a evolução do Ministério Episcopal de maneira natural em conformidade com as demandas das primeiras comunidades. Certo é que a concepção de Episcopado histórico, tendo como fonte a Didaqué, a sucessão apostólica se dava por aclamação popular, momento em que a comunidade, unida em práticas piedosas, com oração e jejum, rogava para que Deus escolhesse um pastor que fosse dócil, desprendido, firme e fiel à doutrina dos Apóstolos e à liturgia dos profetas, doutores e mestres13.
Não havia respaldo canônico ou sacramental, como hoje, antes, compreendia-se como uma ação do Espírito Santo com o propósito de fortalecer a unidade da Igreja e transmissão dos ensinamentos dos apóstolos às gerações futuras.
Referente ao Episcopado histórico, afirma-se que os Bispos são sucessores dos apóstolos, por seu múnus de guardiões da “verdadeira” doutrina. Contudo, o Episcopado histórico não pode ser visto de maneira linear, pois as primeiras comunidades possuíam diferentes concepções teológicas, ministeriais e doutrinais14.
Supomos que na reflexão de Inácio de Antioquia sobre a Teologia dos Ministérios e da elevação do Bispo como símbolo de unidade eclesial, era uma “garantia” de que pelos séculos seguintes, as comunidades, mesmo que historicamente, conservariam a sucessão apostólica, bem como os ensinamentos. O que de fato não ocorreu na história do cristianismo, marcada por inúmeras cisões.
Comunhão Anglicana e Episcopado Histórico
Por meio dessas máximas, a Comunhão Anglicana, expressão que surgiu no século XIX, no ano de 1881, 15 na condição de Igrejas independentes em plena e permanente comunhão com a Sé de Cantuária, reconhecendo a diversidade de expressar a fé em Jesus Cristo Ressuscitado e da importância do acolhimento do povo à missão de Deus, busco compreender o Episcopado histórico como um símbolo de unidade na diversidade.
Sem uma teologia oficial, tendo como paradigma um método teológico fundamentado nas Escrituras Sagradas, na Tradição e na Razão, todo o caráter do Ministério Episcopal encontra-se no (Ordinal) Rito de Ordenação e Sagração no Livro de Oração Comum, presente nas diversas Províncias da Comunhão.
Considerações Finais
O Bispo (a) como símbolo de unidade, colegialidade e autoridade, é o guardião da fé e da disciplina em sua diocese, servindo como mordomo dos bens espirituais e temporais. É prerrogativa do Bispo (a) também, iluminado pelo Evangelho, continuar a missão dos apóstolos, sendo semente do Reino nos diferentes contextos sociais.
Partimos do pressuposto que na Igreja Primitiva não havia consagração, nem mesmo clareza com relação às atribuições e o caráter episcopal, na contemporaneidade a Comunhão Anglicana, herdeira de uma catolicidade e do Episcopado histórico, entende que o Bispo (a) na sua Diocese, representa toda a Igreja, sendo pastor (a) de todos (as), legalmente investido como presidente ex-officio nos Concílios e demais comissões diocesanas.
Conforme os escritos paulinos, sem muita definição das funções de Bispos e Presbíteros (Paulo era um fundador de Igrejas e não um pastor vinculado à uma instituição) uma das possíveis leituras no anglicanismo é que o encargo pastoral não é apenas do Bispo (a), mas de toda a família diocesana, que envolve clérigos (as) e leigos (as); voltamos ao princípio dessa reflexão de que a Igreja é toda ministerial.
Assim sendo, para que o projeto do Reino tenha êxito não depende apenas do Bispo (a), pois seu Ministério é compartilhado. Seu caráter não é apenas de supervisor (conforme a etimologia da palavra, e conceitos neo testamentários), mas paternal/maternal, e não paternalista, como muitos desejam.
No desenvolvimento histórico da teologia dos Ministérios, o episcopado é elemento essencial para alimentar as comunidades locais, espiritualmente, sendo pai/mãe e não foco das atenções. Fator relevante é não esquecer que seu caráter de episcopal, o (a) torna servo (a) de todos (as), e que, com os membros de sua diocese, ele (a), também pertence ao rebanho de Cristo. O que delega às pessoas clérigas e leigas, o devido cuidado, zelo e respeito ao Bispo (a), pois só assim, na vida em caridade e unidade, o Bispo (a) terá forças para conduzir o povo de Deus na missão.
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Notas
1 DUNN, J. D. G. Unidade e Diversidade no Novo Testamento – Um Estudo das Características dos primórdios do Cristianismo. Santo André: Ed. Academia Cristã, 2009, p. 200.
2 Resumo a Fé Cristã – Comumente Chamado Catecismo. Porto Alegre: Ed. IEAB. 2000, p. 22
3 BROWN, R, E, S.S. Reflexões Bíblicas – Sacerdote e Bispo. São Paulo: Ed. Loyola, 1987.
4 Para alguns exegetas, o grupo dos 12 é uma alusão as 12 tribos de Israel.
5 TAKATSU, Sumio. Reflexão a partir da Declaração de Cantuária sobre o Ministério Ordenado. ARCIC.
6 TAYLOR. Dicionário do NT. Grego. São Paulo Ed. Batista Regular, 2000, p.182.
7 VON BALTHASAR, H. U. Teologia da História. São Paulo: Ed. Novo Século, 2003, p. 49.
8 ZILLES, U. (Org.) Didaqué – Catecismo dos Primeiros Cristãos. 2ª. Ed. Petrópolis: Ed. Vozes. 1971, p.79-81.
9 WRIGHT, J. R. As Origens do Episcopado e Ministério Episcopal Na Igreja Primitiva. Tradução: TAKATSU, Sumio. São Paulo, 30/12/1996.
10 SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA. Cartas de Santo Inácio aos Magnêsios. Petrópolis: Ed. Vozes, 1978, p. 52
11 WRIGTH, J.R. Op. cit, 1996.
12 ZILLES, U. Op. cit, 1971, p. 40
13 Idem.
14 DUNN, Op. cit, 2009, p. 216.
15 OLIVEIRA, Vera Lúcia Simões. História do Anglicanismo na Inglaterra. São Paulo: Ed. Fonte Editorial/ CEA, 2017, p.353.
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